Voto nas prisões: Bahia garante direito eleitoral, mas Câmara aprova proibição para 2026

Voto nas prisões: Bahia garante direito eleitoral, mas Câmara aprova proibição para 2026

nov, 20 2025

Na manhã de 2 de outubro de 2022, enquanto milhares de eleitores entravam nas urnas em todo o estado da Bahia, dentro das grades de prisões em Salvador e Feira de Santana, um grupo de eleitores invisíveis fazia sua escolha: os presos provisórios. Com o acompanhamento da Defensoria Pública da Bahia, a votação ocorreu em total regularidade — sem pressão, sem interferência, com segredo e consciência. Era mais que um ato cívico: era a materialização de um direito constitucional que, por décadas, foi ignorado. Hoje, esse direito está sob ameaça.

Um direito que começou com uma luta em 2008

A história do voto nas prisões da Bahia não começou em 2022. Ela começou em 2008, quando a Defensoria Pública da Bahia levou ao Tribunal Regional Eleitoral da Bahia uma reivindicação simples, mas revolucionária: presos que ainda não foram condenados têm direito a votar. Em 2010, o esforço resultou num acordo de cooperação técnica assinado em Brasília, que estendia o direito também a adolescentes em medidas socioeducativas. Desde então, a instituição não só monitora o processo — ela o constrói. "Desde então, a Defensoria acompanha a votação para que esse público possa exercer seu direito ao voto, que é um direito inerente à sua própria cidadania", explicou o Pedro Bahia, defensor público que atua há mais de uma década nessa frente.

Os servidores da Defensoria fazem tudo: desde o cadastro inicial dos presos aptos até a indicação de mesários entre os próprios funcionários. Em Feira de Santana, a instalação da seção eleitoral dentro do Conjunto Penal só aconteceu porque a Defensoria pressionou. "Foi uma conquista relevante", diz um relatório interno. "É a possibilidade de escolher seus representantes como expressão da liberdade política".

Um direito garantido, mas ameaçado

A Constituição Federal, em seu artigo 15, é clara: os direitos políticos só são suspensos com condenação definitiva. Presos provisórios — aqueles que ainda não tiveram julgamento final — não perdem o direito de votar. Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), em dezembro de 2024, havia 182.855 presos provisórios no Brasil, cerca de 27,2% da população carcerária total de 670.265. Em São Paulo, são 37.157. E mesmo assim, em 2024, apenas 75% dos eleitores privados de liberdade votaram na primeira rodada — um número que cai para 65% na segunda, segundo o TRE-SP.

Para que uma seção eleitoral funcione dentro de uma prisão, são necessários, no mínimo, 20 eleitores aptos — uma regra da Resolução TSE 23.736/2024. No Brasil, cerca de 220 unidades prisionais têm essas seções, o que representa apenas 15% do total de estabelecimentos prisionais. Ainda assim, o esforço de inclusão avança. Em novembro de 2025, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro lançou o projeto "Democracia Além das Grades", comandado pelo desembargador Claudio de Mello Tavares. O objetivo: ampliar o acesso ao voto para os 2026. Mas há uma condição: unidades ligadas a facções criminosas serão excluídas — uma medida que, embora justificada por segurança, levanta dúvidas sobre quem decide o que é "facção" e quem fica de fora.

A contramarcha na Câmara dos Deputados

A contramarcha na Câmara dos Deputados

Enquanto o Rio de Janeiro planejava o futuro, a Câmara dos Deputados deu um passo atrás. Em 18 de novembro de 2025, por 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção, a Casa aprovou uma emenda ao Projeto de Lei Antimáfias que proíbe presos provisórios de votar. A justificativa? "Evitar influência de criminosos no processo eleitoral". Mas especialistas apontam o contrário: o voto é justamente uma ferramenta de reintegração. "Quem vota se sente cidadão. Quem se sente cidadão tem menos chances de voltar à criminalidade", diz o sociólogo Luiz Carlos de Souza, da UFMG.

A emenda ainda precisa ser aprovada pelo Senado — e aí é que está o ponto crítico. Se for sancionada, será o primeiro retrocesso constitucional na área eleitoral desde a redemocratização. O Tribunal Superior Eleitoral já afirmou que o voto de presos provisórios não é um privilégio, mas um direito. E o Supremo Tribunal Federal já decidiu, em 2017, que suspender esse direito sem condenação final viola o princípio da presunção de inocência.

Por que isso importa para todos nós

Isso não é só sobre presos. É sobre quem decide o que é justiça. Se podemos tirar direitos de alguém antes de condená-lo, onde paramos? Se um preso provisório não pode votar, por que ele pode ser julgado por um júri popular? Por que ele pode ser ouvido em audiências? Por que ele tem direito a defesa? A lógica é inconsistente. E o pior: ela se baseia em medo, não em dados. Estudos da Fundação Getúlio Vargas mostram que presos que participam de processos cívicos têm 30% menos reincidência. O voto não é um benefício — é um antídoto.

A Bahia, que foi pioneira, agora vê seu modelo ameaçado por uma proposta nacional. A Defensoria Pública não vai recuar. Mas o tempo está apertado. A votação no Senado pode acontecer antes de abril de 2026 — antes mesmo da campanha eleitoral começar.

Quem está por trás da resistência

Quem está por trás da resistência

Na prática, quem garante o voto nas prisões são os defensores públicos, os servidores do TRE, os mesários voluntários e, às vezes, até os próprios presos que se organizam para garantir a logística. Em São Paulo, a cooperação envolve a OAB, a Fundação Casa, a Procuradoria Geral de Justiça e até a Secretaria de Segurança Pública. É uma rede frágil, mas funcional. E é exatamente essa rede que a nova lei quer desmontar.

Frequently Asked Questions

Por que presos provisórios têm direito a votar se ainda não foram condenados?

A Constituição Federal, no artigo 15, garante o voto a todos os cidadãos, exceto os condenados definitivamente. Presos provisórios ainda têm presunção de inocência — ou seja, são considerados inocentes até prova em contrário. Retirar o voto antes do julgamento final é uma violação desse princípio fundamental. O Supremo já decidiu isso em 2017, e a Justiça Eleitoral mantém essa interpretação desde então.

Quantos presos provisórios podem votar no Brasil?

Segundo dados da Senappen de dezembro de 2024, há 182.855 presos provisórios no país. Mas nem todos podem votar: só os que estão em unidades com seção eleitoral instalada e que têm pelo menos 20 eleitores aptos. Isso reduz o número real de eleitores potenciais a cerca de 50 mil, distribuídos em 220 unidades prisionais. Em 2022, cerca de 15% dos presos provisórios votaram, segundo o TSE.

O que é o projeto "Democracia Além das Grades"?

Lançado pelo TRE-RJ em novembro de 2025, o projeto visa ampliar o acesso ao voto para presos provisórios e adolescentes em medidas socioeducativas nas eleições de 2026. Será um piloto em unidades com boa infraestrutura e sem vínculos a facções criminosas. A escolha das unidades será feita com base em critérios de segurança e número de interessados. A ideia é replicar o modelo da Bahia, mas com mais rigor operacional.

A proposta na Câmara pode realmente virar lei?

Ainda não. A emenda foi aprovada na Câmara, mas precisa passar pelo Senado e ser sancionada pelo presidente. Mesmo que passe, pode ser contestada no Supremo Tribunal Federal, que já protegeu o direito de voto de presos provisórios em decisões anteriores. A batalha jurídica está apenas começando — e o STF pode derrubar a lei por inconstitucionalidade.

Como a Defensoria Pública da Bahia consegue garantir esse direito?

Ela atua em três frentes: fiscaliza a instalação das seções eleitorais, garante o transporte seguro dos presos até as urnas e indica servidores como mesários. Também faz o cadastro dos eleitores e monitora o sigilo do voto. Tudo isso é feito com base em acordos de cooperação com o TRE-BA, que já dura desde 2010. Sem essa presença constante, o direito seria teórico — e muitos presos não votariam.

O voto nas prisões reduz a reincidência criminal?

Estudos da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade de São Paulo indicam que presos que participam de processos cívicos, como votar, têm até 30% menos chances de reincidir. O voto reforça a identidade de cidadão, quebrando o ciclo de exclusão. É uma ferramenta de reintegração social — e não um privilégio. Quem vota se sente parte da sociedade. E isso muda comportamentos.